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O sonho lúcido

  • Foto do escritor: Luiz Borges
    Luiz Borges
  • 20 de mar.
  • 5 min de leitura

Hoje me encontrei indisposto. Indisposto para trabalhar, para andar e para escrever. Esse tipo de indisposição que nos consome. Uma dor em meu ombro foi se instaurando de modo a se espalhar por toda a costela. Uma irritação no esôfago fez com que eu não consumisse meu café habitual. A noite mal dormida não fora resolvida com um banho pela manhã. Não acordei com uma ereção, coisa que era um hábito na adolescência. Após essa derradeira série de negativas, olhei-me no espelho e não reconheci o sujeito que ali estava. Com suas rugas, seu cabelo branco e dentes amarelados. Quando foi que me tornei irreconhecível para mim mesmo?

Em outros tempos, esse mesmo sujeito tivera as mais intensas ambições. Achou, erroneamente, que poderia compreender sua existência ou que esta possuía um propósito mais elevado. Felizmente, tais inspirações cessaram já na juventude. Nosso homem comum se deu conta de que nada compreendia e que nunca seria importante. Foi feliz por essa conclusão precoce; normalmente, tais pensamentos só transpassam a mente quando envelhecemos. Não foi o caso. Aderiu à indiferença. Uma indiferença disfarçada de empatia. Uma indiferença que somente os mais íntimos percebiam. Chegou ao extremo da inanição. Passava o dia olhando para o nada. Não se limpava, não lia ou sequer saía de sua pequena morada. Sua barba cresceu desproporcionalmente ao seu rosto pálido. Os cabelos, já sem o tônus da vida, estavam quebradiços de tal modo que, mesmo que quisesse, já não conseguiria penteá-los. Pensar? Já não conseguia pensar. Não era possível formular a mais simples hipótese sobre o mais efêmero acontecimento que pudesse esperar.

Dinheiro já não era um problema. As economias deixadas por sua família não eram vastas, mas, devido à sua situação, não precisava de quase nada para viver. E, pensando melhor, viver até quando? Com uma certeza imutável, não queria mais existir, mas sem o ânimo mórbido para cometer suicídio, nunca acabava com sua vida. A que ponto chegou o pobre diabo. Apatia para esquecer o próprio desespero humano.

Fora esquecido pelos outros. Amigos que ainda o visitavam deixaram de o fazer. As mulheres que ainda o degustavam só sentiam o gosto de morte quando havia aproximação e, assim, deixaram de degustá-lo. Ele não ligou. Não sentiu. Simplesmente seguiu sendo o que era.

Já sem luz em sua pequena casa, deu-se conta de que não precisava de iluminação, apesar de esta ter sido entregue ao homem pelo divino. Divino? Se algum dia foi solícito aos sentimentos de afeição por Deus, hoje já não sentia sua presença. Mal fome sentia. Começou a comer cada vez menos. Chegou a um nível severo de desnutrição. Seus ossos podiam ser vistos através dos buracos em sua camiseta. Sua pele pálida e rígida, mesclada com seu hálito putrefato, faziam-no a perfeita criatura medonha, criatura esta que não poderia ser mal interpretada como um desamparado vivendo na miséria da rua. Não! Ninguém ousaria pensar que se tratava de um mendigo sujo. Mendigos possuíam infinitamente mais dignidade e esperança. Esse sujeito era diferente. Era a representação do maior atentado contra o divino. Quando sua mãe morreu, não apenas esqueceu, mas se deu conta de sua morte meses depois, quando recebeu uma carta de rescisão de aposentadoria.

Todos os sinais de sua demência já floresciam esplendidamente sob a luz do convívio. Tudo começou quando fora rejeitado por uma mulher. Ah, essas danadas! São capazes de quebrar o mais viçoso espírito do homem. Essa dai o amou, ou disse que o amava. As juras de amor sempre partiam de nosso herói. A réplica? A réplica eram palavras vagas e, muitas vezes, repetidas. Em uma bela noite de verão, foram jantar em um bom restaurante. Um restaurante requintado em uma rua não muito movimentada. Um lugar íntimo, escuro e tradicional. Este pequeno lugar, onde uma vez na história, vários casais se comprometeram com o matrimônio e agora era a vez dele. A situação pela qual todo homem deve passar. Aquele salto de fé, onde muitas vezes as preces não são atendidas e acabamos nos declinando ao ateísmo. Foi assim naquela noite. Pediu a mão de sua donzela em casamento. Um retumbante não, que ainda é ouvido nos dias de hoje pelos mais atentos, foi dito. Não foi só um não para a sua proposta infame. Foi um não para sua vida. E quanta vida ele tinha!

Então, após 30 anos do ocorrido, tive esse belo sonho. Sonhei a vida não vivida e, pela primeira vez em três décadas, senti-me em paz. Acordei. A indisposição ainda pairava como um jovem abutre esperando a hora certa de fazer sua refeição em minha carne. Mal consegui levantar. Com um esforço maior que o de Sísifo, coloquei meus pés brancos no chão e dei um passo. A dor consumia todo o meu ser. Não havia esperança ou alegria, porém uma estranha sensação começou a surgir em meu coração.

Relembrei todos os aspectos de minha vida. Relembrei minhas escolhas, meus desafetos, meus amores, minhas culpas. Lembrei-me de mamãe. Aquela velha senhora que, com todos os empecilhos de sua própria vida, deu-me somente amor sem esperar a réplica. Neste instante, dei-me conta de que nunca mais a veria. Pensei sobre a infância. Recapitulei meus sonhos. Já exausto por tantas novidades, tomei uma xícara de café sem açúcar.

O café, ao descer pelo meu esôfago, queimou-o. Fiquei grato pelo incômodo.

Coloquei-me embaixo do chuveiro frio. Meus cabelos já ensaboados caíam em meus dedos. O cheiro que exalava ficou mais forte à medida que a água corria. A cada camada de crosta que se desprendia de minha pele, uma nova surgia, mais suja e cansada. Sequei-me com um pedaço de pano de chão. Levantei-me arqueado e olhei diretamente no espelho. Quem era aquele sujeito tão asqueroso? Não me reconheci. Via apenas um velho com uma vida vazia. Tamanha foi a surpresa que senti meu corpo desvencilhar-se de minha alma. Fui deitar e adormeci o sono dos justos.

Acordei logo pela manhã. Assim como Narciso, fui direto ao espelho. Notei que estava com a barba mal feita. Nada grave, mas ela já não estava delineada junto ao meu queixo; estava cheirando a suor. Aquele suor que todos apresentam ao acordar. Nada grave. Sorri e vi que não tinha mais rugas e dentes amarelados. Olhei ao meu redor e vi minha casa arrumada. Peguei uma cápsula de café e a coloquei na máquina. Não existe nada melhor que um café ristretto. A bebida me deu ânimo para começar de fato o dia.

Ainda tendo dificuldades para distinguir o onírico do meu estado de vigília, dei-me conta de que tinha 30 anos e, ao olhar para baixo, ainda apresentava boa virilidade. Peguei as chaves, chamei o elevador e fui dirigindo ao trabalho.

Não consegui parar de pensar no meu sonho. Um sonho tão vívido que me senti impelido a refutá-lo.

Já eram 5 da tarde. Bati o cartão e entrei no carro. Ainda encasquetado pelo ocorrido e com uma aflição vívida, decidi validar minha vida. Olhei meu saldo bancário, e tudo estava lá. Apertei com força a chave em minhas mãos, e ela não se desfez. Olhei no espelho e não estava velho. Liguei para minha mãe, e ela não atendeu. Deixei chamar por alguns minutos, quando me dei conta de que ela havia morrido meses antes.


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